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segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Rever os caminhos - é tempo de peregrinação

Rever os caminhos - é tempo de peregrinação

Já faz algumas semanas que estamos na quadra da Quaresma. Esse período do tempo litúrgico, que muitas de nossas igrejas seguem, tem uma longa herança que vem desde os tempos da Igreja primitiva. Ao contrário do que alguns possam pensar, a Quaresma não foi uma invenção romana medieval. Pelo contrário, ela replica alguns conceitos eminentemente bíblicos.

A Quaresma começou a ser seguida pelos primeiros catecúmenos: aqueles convertidos ao Cristianismo que se preparavam para a vigília pascal. Ou seja, 40 dias de semana antes da Páscoa, esses irmãos e irmãs entravam em jejum e seguiam uma disciplina rigorosa de aulas em preparação ao seu batismo, que aconteceria na vigília pascal - de sábado para domingo de Páscoa, a fim de que o sacramento tivesse sua beleza simbólica máxima. Ou seja, eram batizados justamente na comemoração da vitória de Jesus sobre a morte, garantindo àquelas pessoas chamadas pelo Pai à fé cristã a certeza da Vida Eterna.

Os domingos sempre são "na" Quaresma, e não "da" Quaresma. Nos domingos, cessa o jejum, pois apesar de estarmos numa época de penitência, precisamos nos conscientizar que a vitória de Jesus sobre a morte teve eficácia para sempre. E o domingo é a festa da Ressurreição. Até mesmo na Quaresma temos que celebrar que Cristo venceu a morte ressuscitou por amor a nós.

Mas os 40 dias de semana que precedem a Páscoa deveriam ser dias de mudança de vida para todos nós. Já temos a certeza da nossa salvação. Já nos declaramos crentes no Senhor Jesus. Já fomos batizados (as). Então, para nós, esses 40 dias deveriam ser momentos de gratidão ao Senhor por tudo o que Ele escolheu fazer por nós, e de nos voltarmos ao caminho de Deus, deixando para trás toda sanha de intriga e obsessão, abandonando os pecados passados e nos preparando para celebrar, mais uma vez, o mistério pascal daquele que nos amou mais que tudo.

O número 40, na Bíblia, tem a ver com testes e provações. Moisés perambulou pelo deserto 40 anos, e ficou por 40 dias no monte Sinai como preparação para receber a Lei (Ex 24:18, 34:1 - 28). Os espias que foram a Canaã ali permaneceram por 40 dias (Nm 13:25, 14:34) Jonas avisou aos ninivitas quanto a seu castigo por 40 dias (Jn 3:4). Ezequiel suportou a iniquidade da casa de Judá por 40 dias (Ez 4:6). E, por fim, tanto Elias (1 Rs 19:8) quanto o Senhor Jesus jejuaram por 40 dias e 40 noites no deserto, sujeitos a toda sorte de provação. 

Esses 40 dias deveriam ser, para nós, caminhadas no deserto, em atenção ao exemplo de Jesus e ao testemunho de profetas e patriarcas. Mas muitas vezes não são. No catolicismo popular, Quaresma virou uma oportunidade de não comer carne e trocá-la por peixe. Jejum não é isso. Jejum é nos privarmos de algo que achamos ser indispensável, e aprender que Deus é maior, e que nos garante a vida a despeito de nossa arrogância em crermos que somos senhores de nossos próprios narizes. Quando deixamos de comer uma refeição, ou abdicamos de um prazer corriqueiro, percebemos que nossa vida não depende daquelas coisas, e sim da graça e da misericórdia de nosso Senhor. E, através dessa penitência, aprendemos que podemos e devemos mudar em termos de nossas listas de prioridades. Podemos recolocar Deus em primeiro lugar, a todo momento, em tudo. Podemos caminhar no deserto tendo a esperança do oásis ao final, confiando somente na mão de Deus a nos guiar, apesar de todas as diversidades ao nosso redor.

Tenho vivido momentos de Quaresma, nesta Quaresma. Tenho passado por um deserto. Muitas coisas que construí em minha vida me foram tiradas. São coisas que cria, até pouco tempo, serem indispensáveis à minha missão. Achava que, como cristão, não havia outra forma de me dedicar à obra de Deus. Agora, sem elas, aproveito para me retrair em jejum e oração. Não devem ser motivo de tristeza e sim oportunidades para que eu confie mais em Deus e na sua providência para conosco. Tenho em meu coração que Deus proverá o alimento para que eu sobreviva nesse deserto. Se meu farnel já não tem mais comida, serão os corvos que me trarão meu sustento para seguir adiante. Deus não abandona nenhum de seus filhos, e certamente me confiará novas missões, novos mandatos e novas oportunidades de anunciar o Evangelho através de meus dons.

Sei que cada um de vocês pode estar passando por dificuldades semelhantes. Não desanimem! O Senhor está com vocês. É nas vicissitudes da vida que aprendemos a confiar na divina mão que nos guia pelas tempestades e desertos. Resta a nós apenas confiar, e orar, pois não há tentações ou dores tão fortes que não possamos suportar. E nosso Senhor sempre nos dará o escape em tempos de necessidade.

As pessoas soberbas pensam serem autossuficientes. Tomam suas decisões de forma unilateral, sem pensar no próximo e em Deus. Não temem o juízo perfeito do Justo Juiz Jesus Cristo. Semeiam o mal sem olhar para trás. Nós, cristãos, não podemos agir desse modo. Precisamos encarar os desertos da alma não como fontes de ódio e vinganças contra quem nos encarcerou e abandonou em lugar desprovido de alimento, e sim como caminhos de purificação e santificação, para que alcancemos a confiança necessária em Deus, que nos criou e amou desde o princípio. Quaresma é tempo de conversão, é tempo de rever os caminhos e de repensar nossas histórias, para que possamos, cada vez mais, sermos fiéis Àquele que tudo nos deu, mesmo sendo nós tão impuros. Quaresma é transformação. Passamos pelo fogo, para sairmos purificados e feitos cada vez mais imagem e semelhança de Deus. Assim fomos criados, e é assim que Ele nos quer.

Uma abençoada semana.

Em Cristo e em oração,

Diác. Nelson de Paula Pereira
contato@nelsondepaula.com