O LEGADO PACIFISTA DE DANIEL BERRIGAN, SJ
por Luke Hansen
Daniel Joseph Berrigan |
Daniel Joseph Berrigan (1921-2016), padre jesuíta e poeta aclamado que, durante décadas, desafiou os católicos americanos a rejeitarem a guerra e o armamento nuclear, morreu no dia 30 de abril na Comunidade Jesuíta Murray-Weigel, no Bronx, Nova York. Ele estava com 94 anos. Foi jesuíta por 76 anos e padre há 63 anos.
O artigo é de Luke Hansen, jesuíta, foi editor associado da revista America e atualmente estuda na Faculdade Jesuíta de Teologia da Santa Clara University, em Berkeley, Califórnia, publicado por America, 30-04-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Sem dúvida, Berrigan está entre os jesuítas americanos mais influentes do século passado, juntando-se a seus semelhantes como John Courtney Murray e Avery Dulles. Padre, poeta, orientador de retiros, professor, pacifista, amigo e mentor, ele é o autor de mais de 50 livros sobre as Escrituras, espiritualidade e resistência à guerra.
Em 1988, Berrigan recebeu o Prêmio Campion da revista America.
Um gigante literário, Berrigan ficou conhecido por seus gestos de desobediência civil contra a Guerra do Vietnã e o armamento nuclear. Criticava a produção de armamentos nucleares, lembrando a profecia de Isaías de “fundir espadas para fazer bicos de arados”. As ações do religioso desafiaram os americanos e católicos a reexaminar as suas relações com o Estado e a rejeitar o militarismo.
Frequentemente ele perguntava a si e a outros: O que o Evangelho exige de nós?
“Para mim, o Padre Daniel Berrigan é Jesus como na qualidade de poeta”, escreveu Kurt Vonnegut.
Daniel J. Berrigan nasceu em 09-05-1921, em Virgínia, Minnesota, o sexto de seis filhos homens. Cresceu em uma fazenda perto de Syracuse, no estado de Nova York.
Aos 18 anos, entrou para a Província de Nova York da Companhia de Jesus com um amigo de infância após receber um folheto sobre o programa rigoroso de formação dos jesuítas. Na época, ele não conhecia nenhum membro da ordem. Foi um “ato de fé de ambos os lados”, mais tarde escreveu.
Durante o seu primeiro compromisso como professor, na Escola Preparatória St. Peter’s, na cidade de Jersey, em Nova Jersey, ainda na década de 1940, Berrigan trouxe os alunos a Nova York para apresentar-lhes o m movimento Catholic Worker. Por vezes eles participavam de encontros para o “esclarecimento do pensamento”, quando palestrantes abordavam tópicos de importância ao movimento católico juvenil. Aí o religioso conheceu Dorothy Day.
“Dorothy Day me ensinou mais do que todos os teólogos”, contou Berrigan à revista The Nation em 2008. “Ela despertou em mim conexões que eu não havia pensado – a equação da miséria humana e a pobreza com a produção de guerras. Ela possuía a esperança básica de que Deus criou o mundo com o suficiente para todo mundo, mas que não havia o suficiente para todo mundo e para guerrear”.
Depois de sua ordenação ao sacerdócio em 19-06-1952, Berrigan foi para a França para um ano de estudos e ministério, estágio final da formação jesuíta. Aí foi influenciado pelo movimento dos Padres Operários. Berrigan professou os últimos votos na Festa da Assunção, em 1956.
Berrigan lecionou francês e filosofia na Escola Preparatória do Brooklin de 1954 a 1957, ganhou o prestigiado Prêmio Lamont Poetry em 1957 pelo livro de poesia, “Time Without Number”. Em seguida, ensinou o Novo Testamento na Le Moyne College em Syracuse, no estado de Nova York.
Em 1963, Berrigan embarcou em um ano de viagem, passando um tempo na França, na Tchecoslováquia, na Hungria, em Roma, na África do Sul e na União Soviética. Viu o desespero entre os jesuítas franceses relacionados com a situação da Indochina, na medida em que os EUA aumentavam o seu envolvimento militar no Vietnã.
Berrigan voltou para casa em 1964 convencido de que a Guerra no Vietnã “somente poderia piorar” coisas. Assim, começou “tão alto quanto pude, a dizer ‘não’ à guerra (…) Simplesmente não teria como voltar atrás”.
Ele ajudou a fundar a Catholic Peace Fellowship e o grupo inter-religioso Clergy and Laity Concerned about Vietnam, cujos líderes incluíam Martin Luther King Jr., Richard John Neuhaus e Abraham Joshua Heschel.
Berrigan se correspondia regularmente com Thomas Merton, Dorothy Day e William Stringfellow, enter outros. Ele também fazia viagens anuais à Abadia de Getsêmani, a casa de Merton, para proferir palestras aos noviços trapistas.
Em “Conjeturas de um expectador culpado” (1966), Merton descreveu Berrigan como “uma inteligência vencedora, um homem que, penso eu, possui, mais do que qualquer um que eu alguma vez conheci, o verdadeiro coração grande e simples dos jesuítas: zelo, compaixão, entendimento e uma liberdade religiosa desinibida. O simples ver-lhe restaura as nossas esperanças na Igreja”.
Ano dramático de assassinatos e protestos que chocaram a consciência dos EUA, 1968 também mostrou ser um ano divisor de águas para Berrigan. Em fevereiro, ele voou para Hanoi, no Vietnã do Norte, com o historiador Howard Zinn e assistiu à libertação de três pilotos americanos capturados. Na primeira noite em Hanoi, eles se acordaram com uma sirene de ataque aéreo e bombas americanas, tendo de buscar um outro abrigo.
Philip Berrigan |
Na medida em que os EUA intensificavam a escalada na guerra, Berrigan preocupou-se que os protestos tradicionais teriam poucas chances de influenciar as ações do governo. O seu irmão, Philip (1923-2002), então sacerdote josefino, já havia assumido um risco muito maior: em outubro de 1967, ele invadiu uma sala de projetos em Baltimore e jogou sangue sobre os arquivos de alguns projetos em andamento.
Sem se deixar abalar com as consequências jurídicas iminentes, Philip planejou uma outra ação deste tipo e convidou o seu irmão mais jovem a se juntar a ele. Daniel concordou.
Em 17-05-1968, os irmãos Berrigan juntaram sete outros ativistas pacifistas católicos em Catonsville, em Maryland, onde pegaram várias centenas de documentos de projetos bélicos e puseram fogo nas proximidades de um estacionamento, usando líquidos inflamáveis caseiros conhecido como napalm. Napalm é um líquido inflamável muito usado pelos EUA no Vietnã.
Em um comunicado, Daniel disse: “Pedimos desculpas, bons amigos, pela quebra da boa ordem, pela queima de documentos ao invés de crianças (...) Não poderíamos fazer, Deus nos ajude, diferente”.
Berrigan foi processado e condenado pela ação. Quando chegou a hora da sentença, no entanto, ele passou à clandestinidade e evitou o FBI durante quatro meses.
“Eu sabia que, em algum momento, seria capturado”, disse ele em 2009 em entrevista à revista America, “mas queria chamar a atenção, tanto quanto fosse possível, para a Guerra do Vietnã e para a ação militar do presidente Richard Nixon no Camboja”.
O FBI finalmente o apreendeu em Block Island, no estado de Rhode Island, na casa de do teólogo William Stringfellow, em agosto de 1970. Ele passou 18 meses na prisão federam de Danbury. Nesse período, ele e Philip foram tema de capa da revista Time.
Os irmãos, reincidentes a vida toda, estavam longe de terminar com os protestos.
No dia 09-09-1980, Daniel e Philip reuniram outros sete para invadir a usina de mísseis da General Electric em King of Prussia, na Pensilvânia, onde realizaram protestos.
Em seu depoimento diante de um tribunal que julgou o caso, Berrigan descreveu a sua luta diária contra a morte enquanto acompanhava moribundos no lar no St. Rose Cancer Home, na cidade de Nova York. Segundo ele, os protestos que haviam realizado tinham relação com o seu ministério de enfrentamento da morte e de luta contra ela. Em 1984, começou a trabalhar no Hospital St. Vincent, também em Nova York, onde ministrou a homens e mulheres com HIV/Aids.
“Para mim, é terrível viver um tempo em que nada tenho a dizer aos seres humanos exceto: ‘Parem de matar’”, explicou ele ao tribunal. “Existem outras coisas bonitas que eu gostaria de estar dizendo a elas”.
Em 1997, Berrigan foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz.
Os últimos anos de Berrigan foram dedicados ao estudo das Escrituras, anos em que também escreveu, orientou retiros, correspondeu-se com amigos e admiradores, acompanhou jovens jesuítas e ativistas pacifistas, além de ter sido um tio para duas gerações de Berrigans. Publicou vários comentários bíblicos relacionando os estudos acadêmicos com reflexão pastoral e inteligência poética.
“Berrigan é incapaz de escrever uma frase prosaica”, afirmou o biblista Walter Brueggemann em uma resenha sobre o livro “Genesis” (2006) de Berrigan. “Ele imita o seu criador com a sua palavra gerativa, que evoca relações e incongruências, abrindo espaços que desorientam, deslumbram e convocam o leitor…”.
De 1976 a 2012, Berrigan foi membro da Comunidade Jesuíta West Side, mais tarde viveu na Comunidade Jesuíta Thompson Street, na cidade de Nova York. Durante estes anos, ajudou a coordenar a Comunidade Kairos, grupo de amigos e ativistas dedicados ao estudo das Escrituras e à ação direta não violenta.
Mesmo sendo um octogenário, Berrigan continuou com os protestos, voltando a sua atenção às guerras americanas no Afeganistão e no Iraque, à prisão na baía de Guantânamo e ao movimento Occupy Wall Street.
Os amigos lembram-se de Berrigan com um homem corajoso e criativo, uma pessoa íntegra disposta a pagar o preço, um farol de esperança, um amigo sensível e carinhoso.
“Devo-lhe o meu coração, a minha vida e a minha vocação”, diz Bill Wylie-Kellermann, pastor da Igreja Episcopal St. Peter, em Detroit, sobre Daniel Berrigan. “Neste século, quantas almas (…) Berrigan chamou para a vida vivida segundo o Evangelho? Quantos atos de ressureição ele promoveu? Quantos corações individados?”
FONTE: O legado pacifista de Daniel Berrigan, SJ. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/554414-o-legado-pacifista-de-daniel-berrigan-sj?fbclid=IwAR2MfM1cBs4E4RrkDQupcrPEpMuHM_KJPGD4ezgucS_96-pYkOO7dOeja94 | Acesso em: 01/05/2020.