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quinta-feira, 24 de março de 2011

PRÓXIMA PARADA: SUBÚRBIO - Renato Lemos

Não é fácil definir exatamente o que é um subúrbio carioca – nem a prefeitura tem dados precisos que ajudem a traçar seus limites -, mas é provável que não exista subúrbio de verdade sem linha do trem, pipa voada, cadeira na calçada, vizinha fofoqueira, botequim da esquina, português no botequim da esquina, fiado só amanhã, sacolé, pelada, top de lycra, carro lavado na rua, churrasquinho, escola de samba, caça-níquel, quintal, cigarra, Cosme e Damião, mangueira e amendoeira, um monte de van, um monte de camelô, bíblia, beata, macumba, criança na rua, Bope, favela, aquelas garotas de shortinho apertado, chinelo de dedo, suor, funk, cerveja e muito calor.

É possível também que subúrbio que é subúrbio mesmo tenha nome e sobrenome, como Ricardo de Albuquerque, Vicente de Carvalho, Quintino Bocaiúva, Oswaldo Cruz, Magalhães Bastos e Bento Ribeiro. Há ainda os que defendam que subúrbio, mais que um conceito geográfico, é um estado de espírito: a pessoa pode deixar o subúrbio, mas o subúrbio jamais a deixará. São pistas a seguir. Desde que a ação da polícia no Complexo do Alemão – aliada às bênçãos de um onipresente São Jorge – trouxe mais paz à região, o carioca voltou a ter a chance de descobrir do que, afinal, é feito o subúrbio.

A estreia de Ronaldinho Gaúcho no Flamengo aconteceu no Engenhão, o estádio cravado no bairro do Engenho de Dentro. É um estádio moderno, com arcos de aço, telões para acompanhar os jogos e lanchonetes de grife. Todos os clássicos do Campeonato Carioca vão acontecer ali. Até 2013, será o campo oficial para Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco. Para chegar lá, o melhor caminho é pegar a linha do trem. A estação do Engenho de Dentro – a mais bonita entre as 19 do ramal de Deodoro – é vizinha do estádio. Saindo da Central do Brasil, são 20 minutos que, com sorte, podem ser percorridos em vagão com ar-condicionado.

O Engenhão se soma a outros motivos – como a inclusão de novos botecos entre os melhores no guia “Rio botequim 2011″, como o excêntrico Codorna do Feio, ali pertinho – que estão devolvendo ao suburbano o orgulho de morar por lá.

- Depois que o carioca superar o medo de sair da Zona Sul, vai descobrir que os botequins do subúrbio têm muito a oferecer – atesta Zé Carlos, do Original do Brás, em Brás de Pina, bicampeão no concurso Comida di Buteco com uma receita revolucionária de bife à rolê. – Sou eu, minha mulher e meu filho, além de duas sobrinhas como garçonetes. Botequim do subúrbio é coisa de família.

Família existe em todo lugar, mas família suburbana é uma instituição à parte, com seus códigos e personagens próprios – e qualquer um que tenha assistido a um episódio de “A grande família” sabe bem o que é isso. É Nenê, Lineu, Tuco, Beiçola e Agostinho por toda parte. Durante os últimos anos, quando foi grande o êxodo dos suburbanos em direção a Jacarepaguá e à Barra, foi a família – ou a memória afetiva, vá lá – que manteve de pé os costumes do lugar.

Onde quer que esteja, o suburbano vai carregar junto com ele os clubes de bairro, o banho de mangueira, o campinho para o “time contra”, o mormaço das tardes de sábado, o futebol no radinho de pilha, o cheiro do incenso e da chuva, os bobbies no cabelo, o vendedor de pão na bicicleta, o bola ou búlica, as coxas da namorada no uniforme da escola, o visgo da jaca, a cola do cerol que gruda nos dedos e nunca mais sai dali. Mais que tudo, o suburbano não desapega das casas da sua infância. E não há subúrbio sem casas de subúrbio.

- Uma casa como esta demorava seis meses para ser vendida, e só quem comprava era creche e centro de macumba. Hoje tenho fila de interessados – diz Paulo Soares, corretor de imóveis, apontando para uma casa de varanda, a imagem de Nossa Senhora de Fátima no alto da fachada, numa rua sossegada do Encantado, bairro com o nome mais bonito da cidade. – Quando o filho se casava, era normal querer morar na Barra ou no Recreio, mas agora ele voltou a procurar imóveis nos bairros onde nasceu.

A casa negociada por Paulo Soares – dois quartos, garagem coberta, muro revestido de azulejos decorados – está avaliada em R$250 mil. É o novo patamar. Um sala e dois quartos em Bonsucesso, por exemplo, que até o ano passado era anunciado por R$90 mil (e não encontrava comprador) agora sai por até R$140 mil. Os aluguéis da área também subiram, cerca de 40%, e já não é fácil encontrar casa de vila – típicas da Zona da Leopoldina – para locação.

- Onde você ia encontrar uma casa igual à minha? Em Ipanema? No Leblon? – pergunta Carlitoel Gomes de Morais, o Carlinhos, que pintou de vermelho e preto a fachada de sua casa, em Olaria, numa homenagem ao Flamengo.

Carlinhos – que afirma que seu nome de batismo é artigo tão raro quanto sua residência – mora há 30 anos no mesmo lugar. Está com 51. A paixão pelo Flamengo se confunde com a paixão pela mulher, Zica, que foi babá de Zico, o Galinho de Quintino. Ele diz ter hábitos, como o de caminhar pela rua depois do jantar para fazer a digestão, típicos do lugar.

Mas Carlinhos lamenta que outros prazeres, como ir ao Cine Olaria (hoje transformado num depósito de material de construção), para ver bangue-bangue, já não façam parte de sua rotina.

- O que deve ser feito é dar aos subúrbios a valorização dos serviços, pensar na obras, no lazer e nos meios de transporte como se fosse no Centro ou na Zona Sul – diz o arquiteto e urbanista Jorge Jauregui, um crítico da maneira desordenada da ocupação urbana carioca. – Além disso, temos que devolver o verde, compactar as áreas, melhorar os trens e intervir na paisagem. O entorno da linha do trem é feio e abandonado, a viagem é um sacrifício. É preciso investir na estrutura e no lazer.

Lazer, em todo o subúrbio, sempre teve nome e endereço: Parque Shangai, logo ali embaixo da Igreja da Penha. O parque está há 63 anos no mesmo lugar e (quase) com os mesmos brinquedos espalhados numa encosta arborizada. Viveu épocas de vacas magras desde que o tráfico se instalou nas redondezas. Isso mudou. Há dois meses, registra um aumento de 25% no número de visitantes. É gente que paga R$15 pelo passaporte com direito a roda-gigante, bate-bate, chapéu mexicano. Num domingo de verão, 38 graus no termômetro, a família de Oswaldo Barbosa ficou 20 minutos na fila do trem fantasma:

- Meu pai me trazia aqui, e agora eu estou vindo com os meus filhos. Não dá pra quebrar a tradição.

Adonias Montenegro sabe bem o que é tradição. Ele tem 72 anos e sempre morou em Marechal Hermes. O bairro, para quem não tem intimidade com a região, é um subúrbio clássico: tem casarões antigos e bem conservados, coreto, ruas de paralelepípedo e militares espalhados em todo o canto. Além de muitas árvores.

Adonias mora em uma casa construída pela Marinha, com varanda, piscina de plástico azul, mangueira no quintal com uma cadeira embaixo. É um lugar estratégico.

Dali, ele fica de olho na rua e no Bar da Amendoeira (existem pelo menos cinco bares da Amendoeira nos subúrbios, o mais famoso é o de Maria da Graça), na esquina em frente. Ele é presidente do Clube do Buraco, um apanhado de uns 30 amigos que, diariamente, se reúne embaixo da tal amendoeira para jogar cartas.

Descobrir o que se conversa ali é mais difícil do que saber se Bangu é subúrbio ou Zona Oeste ou onde, caramba, enquadrar a Ilha do Governador. Aos sábados, a turma do carteado espera o dono do bar encerrar o almoço (feijoada, dobradinha, rabada, um mocotó de lamber os beiços) para colocar o churrasco na rua. Os membros do clube têm direito a levar as famílias.

- Subúrbio é isso aqui, amigos e a família juntos. E a cervejinha, claro. Não saio daqui por nada – diz Adonias, que na juventude jogava futebol no campo hoje ocupado pelas divisões de base do Botafogo. – O Dario Peito de Aço tentava vaga aqui, mas só entrava em campo quando não tinha mais ninguém pra jogar. Não tinha vaga. Muito craque nasceu no subúrbio, cara!

Adonias talvez seja um romântico, nostálgico de uma época que não volta mais. Do tipo que prefere o samba ao funk, o Mercadão de Madureira ao NorteShopping, a conversa no portão ao papo na lan house, a bola de gude ao Playstation, o pé-sujo da esquina ao botequim de franquia, o barbeiro ao salão de cabeleireiro, a Igreja da Penha ao templo da Universal do Reino de Deus. Do tipo que faz questão de afirmar que subúrbio é uma coisa e periferia, ah, periferia é outra, completamente diferente. Não está só.

A Caprichosos de Pilares, que este ano tenta voltar ao Grupo Especial, tem os subúrbios cariocas como enredo. Lá pelo meio do samba, a letra diz: “O povo de bem pede proteção/ Senhor, deram as costas pra me renegar/ Mas minha fé, ninguém vai abalar/ Sou suburbano e não me canso de lutar.”

O subúrbio, todo ele, é mais ou menos assim.

Fonte: Jornal O Globo, 06/02/2010

2 comentários:

blog do Déda disse...

Belíssimo texto, típico de Renato Lemos, mas há uma imprecisão. O Parque Shangai não está a 63 anos na Vila da Penha. Tenho 62 e andei muito na sua montanha russa, de madeira, na Quinta da Boa Vista e, claro, no trem fantasma. Esse detalhe não desvaloriza o conteúdo, de beleza singular.

Hedjan C.S. disse...

Parabéns pelo texto! Muitas informações legais, algumas novas, outras com cheiro de nostalgia. Excelente trabalho!