Michel Servet (1511-1553) - escultura de Jean Beffier (1851-1920), localizada em
Statue du square Aspirant Dunand à Paris.
ANATOMIA DO PODER RELIGIOSO
um estudo do campo protestante
brasileiro
Breno Martins Campos
Universidade Presbiteriana Mackenzie
INTRODUÇÃO
Este artigo tem por referencial
teórico as contribuições de Max Weber e Pierre Bourdieu ao estudo das
religiões, campo religioso e protestantismo, ao mesmo tempo em que, por
interesses transdisciplinares, convida John Kennedy Galbraith para a discussão
e diálogo, buscando em sua obra certa dose de novidade e originalidade ao
estudo de um tema clássico para a sociologia da religião: questões de poder e
dominação.
A terminologia sociológica consagrada
divide a implantação do protestantismo no Brasil em duas categorias
relacionadas a dois grandes movimentos históricos: protestantismo de imigração
e protestantismo de conversão ou missão (CAMARGO, 1973). Mais recentemente e
preocupada com o rigor da classificação, a sociologia da religião brasileira
acrescentou uma terceira categoria como referencial historiográfico: o
protestantismo de invasão (MENDONÇA, 2004). A
experiência dos franceses calvinistas, com a presença temporária da expedição
de Nicolau Durand de Villegaignon no Rio de Janeiro, de 1555 a 1567, e a dos
holandeses reformados no Nordeste brasileiro, especialmente em Pernambuco, de
1630 a 1654, são exemplos de protestantismo de invasão, que acabaram por não se
fixar em solo brasileiro.
O objeto a ser investigado passa por
três recortes em sua definição: (1) dentro das categorias acima, o
protestantismo estadunidense de missão que se dirigiu para o Brasil a partir da
segunda metade do século XIX; (2) dentro do protestantismo de missão, o
presbiterianismo, ramo protestante calvinista ou reformado, que oficialmente
está em terras brasileiras desde 1859, com a chegada do missionário Ashbel Green
Simonton ao Rio de Janeiro; (3)
dentro do presbiterianismo, a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB). A
ampliação possível da compreensão do estudo de caso particular para a do
macrocosmo protestante brasileiro fica por conta dos leitores e de outros pesquisadores
dos mesmos assuntos.
Para a construção do objeto de
investigação, interessa ainda a explicação de Joachim Wach de que são
necessários alguns pressupostos e conteúdos para a existência de uma
organização religiosa, que vão determinar também a possibilidade de existência
de uma igreja. São as condições para a garantia da existência e sobrevivência
da instituição e, depois, seu fortalecimento em concorrência dentro do campo
religioso.
Acompanhada de continuada reflexão e
discussão, de sistematização e elaboração de doutrina, segue-se a cuidadosa e
abrangente formação de norma de fé ou credo, a padronização de formas de culto
coletivo e eventualmente o estabelecimento de uma constituição para dar
sustento à nova organização estável. A tradição oral é exarada por escrito, a
tradição escrita é reunida e padronizada, redefine-se a doutrina e daí por
diante são classificados como heresia todos os desvios e as opiniões que não
estejam de acordo com os ensinamentos oficialmente aceitos. [Adolf von] Harnack
enumera os seguintes fatores que influenciaram na formação do dogma cristão: 1)
as idéias derivadas dos escritores canônicos; 2) a tradição
primitiva; 3) as necessidades de culto e constitucionais; 4) adaptação
ao pensamento dos tempos; 5) condições políticas e sociais; 6) idéias
morais em transformação; 7) consistência lógica e analogia; 8) tendência
à harmonização das diferenças existentes; 9) exclusão de erro; 10) força
do hábito. Com o crescimento mais abundante de formas de expressão cúltica como
práticas devocionais, ritual, calendário e festas, tornaram-se necessárias
divisão mais bem elaborada e diferenciação de funções e funcionários. O
apostolado na primitiva Igreja cristã era atribuído ao próprio fundador (Mt
16,13ss; 18,72; Atos) e incluía funções que posteriormente deveriam ser
assumidas por grupos diferentes (ordens) (Efésios, caps. 4 e 11). O diaconato
(Atos, cap. 6), o presbiterato (Atos, cap. 21) e o episcopado (1ª Timóteo)
seguiram-se em devida sucessão. As três ordens, cuja relação e legitimidade
seriam apaixonadamente discutidas em tempos posteriores, foram assim
estabelecidas, no início provavelmente com diferenças locais. Mesmo então, por
um tempo reconhecia-se a autoridade de pessoas com extraordinários dons
espirituais. À medida que a liderança carismática foi declinando, porém, foi
surgindo um tipo diferente de autoridade, o "clero", que se
distinguia do "laicato” (WACH, 1990, p. 177-179).
Pressupostos conceituais e conteúdos
gerais que garantem a existência, fortalecimento e posicionamento histórico e
social da IPB (instituição religiosa e comunidade de fé) frente à concorrência
interna ao campo religioso brasileiro e aos microcampos protestante e
presbiteriano. Os três primeiros artigos da Constituição da IPB (CI/IPB) com seus
parágrafos e alíneas, longos o suficiente para não serem transcritos aqui,
definem a natureza, o governo e os fins da IPB, e parecem acompanhar os passos
listados acima por Wach.
1 Dominação racional-legal: a burocracia
presbiteriana
Para análise da administração na IPB,
relações de poder em seu interior e exercício da autoridade de uns sobre os
outros (detentores de poder versus fiéis consumidores de bens
religiosos), há necessidade de conceituar o tipo de dominação que ocorre nela. Segundo
terminologia weberiana, dá-se na IPB a dominação de caráter racional ou legal,
pois sua legitimidade reside nas ordens estatuídas. Os detentores do poder são
obedecidos não por direito próprio, mas em virtude das regras, que podem ou não
ser modificadas por meio de processos previstos pelo próprio texto legal.
As posições antecedem seus ocupantes,
segundo a teoria geral de funcionamento dos campos (BOURDIEU, 1992). Eleitos
diretamente pela assembléia dos membros da igreja, os presbíteros têm sua
autoridade garantida por leis:
O Presbítero regente é o representante
imediato do povo, por este eleito e ordenado pelo Conselho, para, juntamente
com o pastor, exercer o governo e a disciplina e zelar pelos interesses da
igreja a que pertencer, bem como pelos de toda a comunidade, quando para isso
eleito ou designado (CI/IPB, Art. 50).
Apesar de os presbíteros não serem nomeados,
mas eleitos, e de não receberem remuneração monetária pelo seu trabalho,
pode-se dizer que eles são o quadro burocrático-administrativo da igreja, uma
vez que são eleitos para exercerem o governo da igreja.
O caso da IPB e seus presbíteros
regentes (leigos eleitos) e docentes (pastores) não é mesmo o de um tipo puro
de dominação: garantida a preponderância das leis estatuídas, o sistema traz em
seu bojo elementos mesclados dos três tipos de dominação. A contaminação do
modelo ocorre da seguinte maneira: os homens escolhidos
são os que gozam de prestígio na comunidade, em virtude de sua tradição (origem
familiar, status social) e
carisma pessoal (dons, talentos, aptidões naturais).
Wilson Emerick de Souza (1998) propõe
a existência de um código introjetado no inconsciente dos fiéis que determina
um modelo ideal de representante: estabilidade financeira, eficiência
profissional, exemplo de vida familiar, opção política e teológica conservadora,
rigorismo disciplinar, espírito anticatólico, centralidade de poder, elitismo e
símbolos de status.
Ao contrário do que prevê a sua estrutura
governamental quanto à inexistência de hierarquia entre os diversos cargos na
Igreja, os presbíteros representam o poder na instituição e, devido aos seus privilégios,
competem entre si e especialmente com o pastor. Outra evidência do status da
posição frente ao grupo é evidenciada por ocasião das eleições internas que são
bastante concorridas, envolvendo disputa pelo exercício do poder, uma vez que
este é o posto de maior importância na comunidade local e oferecerá condições
para galgar outros cargos nos concílios superiores. O que se verifica no
processo eleitoral é que, geralmente, os não-eleitos se distanciam da
comunidade e de outros cargos menores, ou passam a freqüentar outra comunidade visando
a reiniciar sua trajetória na busca do exercício do poder (SOUZA, 1998, p. 26).
Como qualquer outro locus, o
campo religioso é também construído socialmente por atores que dão significado
a ele e dele recebem significado, portanto, as proposições acima fazem sentido
porque, ainda que menos atraente à maioria das pessoas do que outras formas de
poder e dominação, o poder religioso atrai aquelas que habitam o mundo
religioso.
Na IPB, o enfoque das lutas internas
pelo poder recai sobre o conflito primordial entre a ortodoxia e a heresia, não
somente em sentido teológico, mas como as forças do novo contra as da ortodoxia
dominante, que pretende preservar o poder administrativo dos bens religiosos
por meio do monopólio da administração eclesiástica.
Para minimizar a competição (excluir a
concorrência), os mantenedores do status quo fazem uso de muitos
artifícios na luta pelo poder: os principais instrumentos são a doutrina e o
controle do comportamento dos fiéis. Os
homens do poder político-eclesiástico tornam-se também os homens do poder de
manipulação dos bens religiosos, inclusive da vida dos fiéis, pois se
apresentam como os únicos detentores, manipuladores e porta-vozes da vontade de
Deus.
2 Poder condicionado: a organização
presbiteriana
O mesmo objeto e sua dinâmica de
dominação burocrática podem ser explicados de outra forma, por meio de outra
linguagem. É a sociologia em busca do diálogo, da transdisciplinaridade. O
campo religioso e a IPB dentro dele lançam desafios plurais à compreensão
científica, sociológica. As respostas também têm de ser plurais.
Em Anatomia do Poder, Galbraith
(1986) desenvolve uma análise histórica do poder e das relações de poder entre
as pessoas. Sua intenção não é repetir esquemas de obras anteriores sobre o
assunto: o estudo do poder político, militar, religioso, econômico etc., mas
buscar as explicações para os conteúdos e continentes mais profundos do poder,
daí a anatomia.
Dentre os teóricos que o antecederam
na tarefa, a quem ele assume dever parte de sua bagagem cultural, apresenta-se
Max Weber em primeiro lugar (GALBRAITH,1996). Já no primeiro capítulo,
"Uma visão geral", Galbraith retoma a definição weberiana: poder é
"a possibilidade de alguém impor sua vontade sobre o comportamento de
outras pessoas" (1986, p. 2). A afinidade dos temas propostos pelos dois
autores é genésica e gnosiológica, resta evidenciar a originalidade terminológica
e a importância das idéias na obra de Galbraith.
Três são os tipos puros de poder:
condigno, compensatório e condicionado. Para os quais vale a análise anterior:
"A dificuldade para se compreender o poder é, como sempre, a ausência de
casos puros" (GALBRAITH, 1986, p. 24). A cada tipo de poder correspondem
um instrumento para o seu exercício e uma fonte de onde ele emana, os quais
distinguem os detentores do poder daqueles que lhe são subordinados.
O instrumento do poder condigno é a
ameaça de punição e sofrimento; sua fonte, a personalidade: espécie de
liderança capaz de se impor fazendo uso de suas qualidades físicas, mentais,
oratórias, morais. No caso seguinte, como o próprio nome indica, o instrumento
do poder compensatório é a recompensa positiva, cuja fonte é a propriedade de
bens e capital. O condigno e o compensatório são dois tipos de poder objetivos:
"aqueles que aceitam a vontade de outros estão conscientes de
fazê-lo" e "aqueles que exercem o poder também o fazem
conscientemente" (GALBRAITH, 1986, p. 15). O poder condicionado é mais
sutil: às vezes, nem os que detêm o poder e nem os dominados têm consciência
clara de estar numa relação de dominação. Ocorre o condicionamento – daí o nome
– das pessoas para a aceitação das relações de poder. Seu instrumento é a
persuasão, a educação ou o compromisso social. O compromisso com o que
"parece natural, apropriado ou correto leva o indivíduo a se submeter à vontade
alheia" (GALBRAITH, 1986, p. 6). O poder condicionado relaciona-se às convicções
e crenças das pessoas. Sua fonte é a organização:
A definição de organização dada pelo
dicionário – "um número de pessoas ou grupos ... unidos para algum
propósito ou trabalho" – exprime seu caráter essencial. Os participantes,
em maior ou menor grau, submeteram-se aos objetivos da organização em busca de
algum objetivo comum que, por sua vez, normalmente requer a conquista da
submissão de pessoas ou grupos externos à organização (GALBRAITH, 1996, p. 58).
Com a persuasão por instrumento e a
organização como fonte, o que importa é a manutenção da crença, no caso do
poder condicionado. Os funcionários da administração eclesiástica, presbíteros
(mesmo sem remuneração financeira) e pastores da IPB, esforçam-se para que a
mesma crença seja sempre mantida: o discurso que versa sobre as verdadeiras
doutrinas. A educação condicionada, os mecanismos de defesa e disciplina da
organização eclesiástica possibilitam a salvaguarda da linguagem correta e das
pessoas que a aceitam.
O que se espera dos fiéis é a aceitação
como que natural das coisas sociais, sem a busca pelas origens. Na experiência
cotidiana nas igrejas da IPB, é comum que se diga e ouça: "sempre foi
assim", "isso é para ser aceito" ou "não se discute".
Rubem Alves
afirma que as instituições, também a igreja, "são cristalizações de uma
sabedoria que não tem consciência de sua origem" (1982, p. 41); também que
são herança do passado e oferecem aos fiéis uma interpretação pronta do passado
e do mundo, que traz em seu bojo a indicação dos comportamentos adequados
frente aos problemas da vida. A sabedoria das instituições é “herdada e o
passado tem sempre prioridade sobre o presente” (ALVES, 1982, p. 43).
A educação, formal e informal, é
instrumento para persuasão das pessoas em relação à aceitação do status quo e
dos que detêm o poder dentro dele. A educação assume forte tendência de
doutrinação (propaganda), cujo objetivo é o de manter a crença. “O poder
condicionado é o produto de um continuum que parte da persuasão objetiva,
visível, até o ponto em que aquilo que o indivíduo no contexto social fora
levado a acreditar seja intrinsecamente correto” (GALBRAITH, 1986, p. 30).
O objetivo desse tipo de educação é
alcançado quando cada vez mais pessoas têm menos interesse em pensar, refletir,
discutir. Como no exército, Galbraith considera que dentro das empresas atuais
faz muito sucesso o discurso: "as crenças e aspirações da empresa existem
para ser aceitas. E o funcionário aceita e cumpre a sua obrigação" (1986,
p. 62). A análise do discurso do exército e da empresa pode ser aplicada à
igreja também, o que Galbraith (1986) autoriza ao analisar paralelamente a
igreja, o exército e a empresa, dentre outras instituições, como modelos
comprobatórios de suas hipóteses.
Por produção de pensamento correto nas
mentes dos neófitos recém-convertidos e por reprodução no caso de fiéis mais
experientes, uma organização religiosa desenvolve competente instrumento de
defesa do seu corpo doutrinário. No caso da IPB, para além dos momentos
informais de relacionamento, a educação acontece formalmente por meio de
sermões nos cultos, estudos bíblicos e doutrinários, e aulas na Escola
Dominical.
Como grupo de pessoas unidas com
mesmos propósitos, a organização torna-se fechada ao novo que pretenda alterar
o que sempre existiu: questionamentos, idéias, propostas, críticas. Galbraith
chega a afirmar "que a história de expressões altamente organizadas de
poder – da Igreja, do partido comunista, até mesmo de uma máquina política
municipal – é uma longa e ininterrupta crônica de tentativas para eliminar a heresia"
(1986, p. 65). A eliminação das heresias (e dos hereges) faz parte da dinâmica própria
de funcionamento do campo religioso a fim de mostrar quem manda no campo religioso.
O fiel que não se condiciona ao poder
de forma integral é considerado um dissidente interno, e tende a ser expulso da
igreja. Da
mesma forma que as heresias doutrinárias ou o comportamento fora do padrão
esperado não entram na igreja, a organização não permite que os diferentes
possam falar em seu meio. É comum que se ouça no meio presbiteriano brasileiro
(igrejas, seminários, concílios, instituições): "ele não pode falar aqui,
pois não pensa como nós". Os fiéis, e até alunos das escolas teológicas, são
considerados seres em condicionamento, não em processo dialógico de educação.
CONCLUSÃO
A análise da igreja como instituição
social, e não apenas como comunidade religiosa, mística ou de fé, permite a
Rubem Alves afirmar que ela "é um mecanismo social que programa o
comportamento humano de forma especializada, de sorte que ele produz os objetos
predeterminados pela instituição" (1982, p. 41). A função da instituição é
fundamentalmente prática, pois programa o comportamento por meio da persuasão e
reforço das crenças, e conduz o indivíduo a reproduzir comportamentos segundo o
monopólio da instituição. A funcionabilidade da instituição identifica-se com a
própria verdade.
É dentro da instituição-igreja que se
rotula um discurso de ortodoxo ou heterodoxo, como resultado de disputa de
poder político dos agentes envolvidos na sustentação dos discursos. A chamada
vontade de Deus é o discurso de um ser humano ou de um coletivo forte o
suficiente para ser vencedor na concorrência, fazendo de suas palavras as de
Deus. A heresia deixa de ser uma questão de verdade e passa a ser uma questão
relacionada a poder. Heresia é a voz dos fracos.
Não nos esqueçamos, (...) de que a palavra
herege, bem como a palavra ortodoxo, são palavras usadas por alguém. É
evidente que os hereges não se definem como hereges. Heresia é uma palavra que
é pronunciada pelos ortodoxos. Aqueles que têm o poder para se definir como
ortodoxos e para definir outros como hereges são, evidentemente, aqueles que
são mais fortes: os que podem prender, amedrontar, expulsar. Em outras
palavras, aqueles que têm o poder para usar o mundo constituído pela linguagem
como instrumento de poder (ALVES, 1982, p. 36).
Do geral de volta para o caso da IPB,
há um exemplo típico a respeito de tudo o que se tratou acima: no papel de
representantes da vontade de Deus, presbíteros e pastores têm consciência
própria de que representam as realidades divinas. Há uma identificação pessoal
com o papel.
(...) é muito importante recordarmos que os
papéis não são apenas padrões externos de conduta, mas são interiorizados na consciência
daqueles que os desempenham e constituem um elemento essencial da identidade
subjetiva desses indivíduos (BERGER, 1995, p. 105).
Depois de sua eleição, os presbíteros
regentes entendem-se como representantes plenipotenciários de Deus, sendo que a
sua vontade é também a dele. As decisões humanas passam a ser divinas. Há uma
mistificação e santificação das palavras e ações humanas.
A autoridade política é entendida como agente
dos deuses, ou idealmente até como uma encarnação divina. O poder humano, o governo
e o castigo se tornam, assim, fenômenos sacramentais, isto é, canais pelos
quais forças divinas são aplicadas à vida dos homens para influenciá-los. O
governante fala em nome dos deuses, ou é um deus e obedecer-lhe equivale
a estar em relação correta com o mundo dos deuses (BERGER, 1995, p. 47).
Os fiéis, por sua vez, tendem a perder
a capacidade de se indignar ou de entender que até as instituições podem ser
alteradas e superadas, da mesma maneira o discurso que sempre as sustentou. O
fato de o discurso vencedor ser o de quem tem mais poder contribui para que as
heresias potencialmente regeneradoras morram antes do seu nascimento, abortadas
pelos mecanismos da instituição.
Como nunca é possível enquadrar a vida
num artigo científico, antes de terminar, é necessário o registro de que a
dinâmica da relação ortodoxia versus heresia não se restringe ao que foi
exposto aqui. Dentro do campo religioso, mesmo quando o caso é o de uma
burocracia organizacional conservadora como a IPB, nascem as resistências ao poder
da forma como é operado. A resistência ao poder é algo intrínseco ao fenômeno assim
como o seu exercício. Weber e Bourdieu, também Galbraith, já formularam teorias
para a explicação do poder que gera contrapoder, inclusive para o caso de
religiões, nas mesmas obras citadas aqui. Teorias que podem ser apropriadas
para a explicação do presbiterianismo brasileiro, sem forçar sua intenção
original, uma vez que se tratam de teorias gerais. O que se apresenta como
proposta para um outro artigo.
DISPONÍVEL EM: <http://www.pucsp.br/revistanures/revista3/3_edicao_breno.pdf> ACESSO EM 06/04/2015.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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tolerância. São Paulo: Paulinas, 1982. 178p.
BERGER, Peter Ludwig. O dossel sagrado;
elementos para uma teoria sociológica da religião. Trad. José Carlos
Barcellos. 2 ed. São Paulo: Paulus, 1995. 194p.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas
simbólicas. Trad. Sérgio Miceli et alii. 3 ed. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1992. 361p.
CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de (org.). Católicos,
protestantes, espíritas. Petrópolis: Vozes, 1973. 184p.
CERVANTES-ORTIZ, Leopoldo. A teologia de
Rubem Alves: poesia, brincadeira e erotismo. Trad. Eleonora Frenkel
Barretto. Campinas: Papirus, 2005. 250p.
CI/IPB. In: Manual Presbiteriano.
12 ed. São Paulo: Cultura Cristã, 1995. p. 7-64.
COHN, Gabriel (org.). Max
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GALBRAITH, John Kennedy. Anatomia do poder.
Trad. Hilário Torloni. 3 ed. São Paulo: Pioneira, 1989. 205p.
MENDONÇA, Antônio Gouvêa. Evolução histórica e
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SOUZA, Wilson Emerick de. Pastores em
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WACH, Joachim. Sociologia da religião.
Trad. Attílio Cancian. São Paulo: Paulinas, 1990. 495p.
WEBER, Max. Economia e sociedade:
fundamentos da sociologia compreensiva, v. 1. Trad. Regis Barbosa; Karen
Elsabe Barbosa. 3 ed. Brasília: UnB, 1994. 422p.
A
temática das três categorias foi apresentada por Antônio Gouvêa Mendonça em sua
comunicação "Protestantismo brasileiro, uma breve interpretação
histórica" no Encontro Temático "Católicos, Protestantes,
Espíritas... 30 anos depois", realizado pelo Programa de Estudos Pós-Graduados
em Ciências Sociais da PUC-SP, de 26 a 28 de agosto de 2003; do qual se
originou o livro Sociologia
da religião e mudança social (...), organizado por
Beatriz Muniz de Souza e Luís Mauro Sá Martino.
"Os
presbiterianos brasileiros são fiéis a João Calvino quanto ao governo
eclesiástico. Organizam-se a partir da relativa autonomia da congregação local,
num sistema federativo e piramidal de concílios. Cada congregação local tem um
conselho de presbíteros eleitos por ela; um grupo de congregações locais forma
um presbitério; um grupo de presbitérios forma um sínodo, e todos os
presbitérios formam o supremo concílio ou assembléia geral" (MENDONÇA, 1990,
p. 36).
Dentro
da categoria presbiterianismo de missão, além da IPB (muito conservadora), organizaram-se
no Brasil outras denominações presbiterianas ligadas direta ou indiretamente ao
movimento original: Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (1903,
moderadamente conservadora), Igreja Presbiteriana Conservadora (1940,
conservadora radical, saída da IPIB), Igreja Presbiteriana Fundamentalista
(1956, conservadora radical, saída da IPB), Igreja Presbiteriana Renovada
(1975, pentecostal, saída da IPB e da IPIB) e Igreja Presbiteriana Unida do
Brasil (1978, aberta e ecumênica, saída da IPB) (MENDONÇA, 1990). Cf. também:
MATOS, Alderi Souza de. Denominações Presbiterianas no Brasil. Disponível em: .
Acesso em: 8 mar. 2006.
O
próprio Wach acrescenta em nota de rodapé: "A controvérsia 'episcopal' e
'presbiteral' não pode ser discutida aqui. Alguns interpretam o episcopado como
função (de alguns anciãos), outros como cargo distinto" (1990, p. 178). A
IPB considera que presbiterato e episcopado são palavras que designam o mesmo
ofício.
As
palavras poder e dominação têm aparecido no texto acima sem preocupação
rigorosa com o sentido pretendido por Weber para elas. Ainda que sejam
próximas, o sociólogo propõe certo cuidado quanto a sua utilização: "poder significa
toda probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra
resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade" e "dominação é
a probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre
determinadas pessoas indicáveis" (WEBER, 1994, p. 33). Weber considera o
termo dominação mais preciso do que poder (sociologicamente amorfo, em sua
opinião).
A
CI/IPB, promulgada aos 20 de julho de 1950, é considerada um documento de
difícil alteração junto com os Símbolos de Fé da IPB (os documentos da
Assembléia de Westminster do século XVII), por comparação com a Bíblia,
imutável, e com as decisões dos concílios, mais abertas a emendas ou reformas.
"Esta Constituição, a Confissão de Fé e os Catecismos Maior e Breve, em vigor
na Igreja Presbiteriana do Brasil, não podem ser emendados ou reformados senão
por iniciativa do Supremo Concílio" (CI/IPB, Art. 139). Para emendas,
modificações que atingem apenas partes da CI/IPB ou dos documentos de
Westminster, são necessários votos favoráveis de 2/3 dos presbitérios para que
o assunto seja enviado ao Supremo Concílio para aprovação; no caso de reforma,
alteração que modifica o todo ou grande parte dos documentos legais ou doutrinários,
há necessidade de manifestação favorável de 3/4 dos presbitérios.
Weber
autoriza a classificação, pois admite que há tipos de administração
burocrática, a caracterizar a dominação racional, que não se enquadram em todos
os pressupostos gerais e técnicos exigidos pelo padrão teórico adotado, mas que
não deixam de ser administração burocrática de um tipo de dominação racional
(COHN, 1991).
A
IPB denomina seu sistema de governo de democrático-representativo, porém, a
democracia é limitada porque as mulheres, membros da igreja, votam para
escolher seus representantes, mas não podem ser votadas: "Para o ofício de
presbítero (...) serão eleitos homens maiores de 18 anos e civilmente
capazes" (CI/IPB, Art. 25, § 2º).
Na
dominação tradicional, "obedece-se à pessoa em virtude de sua dignidade
própria, santificada pela tradição: por fidelidade" (COHN, 1991, p. 131).
A
dominação carismática é "baseada na veneração extracotidiana da santidade,
do poder heróico ou do caráter exemplar de uma pessoa e das ordens por esta
reveladas ou criadas" (WEBER, 1994, p. 141). Wach (1990) lembra que, para
Weber, toda eleição em organizações religiosas leva em conta o carisma pessoal
do eleito.
Não
é por acaso que, junto com os símbolos doutrinários de fé (os documentos de
Westminster) e sua constituição, a IPB mantenha como um de seus documentos
principais o Código de Disciplina. A intenção primeira do documento é positiva,
ou seja, operar por condicionamento para manter disciplinarmente o
funcionamento da denominação. Caso haja necessidade, segundo opinião de
presbíteros e pastores nos concílios competentes, o documento assume o caráter
negativo da disciplina, ou seja, passa a operar para corrigir por meio de
admoestação, pena ou exclusão do membro faltoso.
Seria
importante explicar como e por que o exercício do poder passa do presbítero docente
(o pastor) para os presbíteros regentes na IPB: o que se configura tarefa
extensa demais para os limites deste artigo. De passagem, registra-se que o
entendimento do trânsito e operacionalização do poder no presbiterianismo deve
ser buscado nas relações entre as categorias sacerdote, profeta e leigo, que
compõem a explicação da gênese e estrutura do campo religioso (WEBER, 1994;
BOURDIEU, 1992).
Sobre
o fascínio do poder, Galbraith argumenta que “indivíduos e grupos buscam o
poder para promover seus próprios interesses, inclusive, e talvez
principalmente, seus próprios interesses pecuniários. E para estender a outros
os seus valores pessoais, religiosos e sociais” (GALBRAITH, 1986, p. 8). No
caso das religiões, aqueles que detêm o poder na comunidade pretendem manter-se
nessa condição, como garantia de que seus valores e interesses poderão ser
satisfeitos, inclusive, e talvez principalmente, os pecuniários.
A
entrada de Rubem Alves no diálogo com os clássicos da sociologia da religião e
do poder é justificada pelo seguinte argumento: "No final de 1970, Alves,
'sem dúvida o mais importante teólogo que a IPB (Igreja Presbiteriana do
Brasil) produziu até agora [1985]', renunciou a seus direitos como pastor [da
IPB]" (Hans-Jürgen Prien apud
CERVANTES-ORTIZ,
2005). Sua produção bibliográfica inclui uma série de textos e livros a
respeito do funcionamento do campo religioso brasileiro, tendo por objeto de
estudo em muitos casos a IPB, seu clima de inquisição, intolerância e violência
contra o pensamento divergente (CERVANTES-ORTIZ, 2005).
O
indivíduo de fora, que não se submete à organização, é menos perigoso e menos
combatido do que o dissidente interno (GALBRAITH, 1986).