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terça-feira, 7 de abril de 2015

ANATOMIA DO PODER RELIGIOSO

Michel Servet (1511-1553) - escultura de Jean Beffier (1851-1920), localizada em 
Statue du square Aspirant Dunand à Paris.

ANATOMIA DO PODER RELIGIOSO
um estudo do campo protestante brasileiro

Breno Martins Campos
Universidade Presbiteriana Mackenzie

INTRODUÇÃO

Este artigo tem por referencial teórico as contribuições de Max Weber e Pierre Bourdieu ao estudo das religiões, campo religioso e protestantismo, ao mesmo tempo em que, por interesses transdisciplinares, convida John Kennedy Galbraith para a discussão e diálogo, buscando em sua obra certa dose de novidade e originalidade ao estudo de um tema clássico para a sociologia da religião: questões de poder e dominação.
A terminologia sociológica consagrada divide a implantação do protestantismo no Brasil em duas categorias relacionadas a dois grandes movimentos históricos: protestantismo de imigração e protestantismo de conversão ou missão (CAMARGO, 1973). Mais recentemente e preocupada com o rigor da classificação, a sociologia da religião brasileira acrescentou uma terceira categoria como referencial historiográfico: o protestantismo de invasão (MENDONÇA, 2004)[1]. A experiência dos franceses calvinistas, com a presença temporária da expedição de Nicolau Durand de Villegaignon no Rio de Janeiro, de 1555 a 1567, e a dos holandeses reformados no Nordeste brasileiro, especialmente em Pernambuco, de 1630 a 1654, são exemplos de protestantismo de invasão, que acabaram por não se fixar em solo brasileiro.
O objeto a ser investigado passa por três recortes em sua definição: (1) dentro das categorias acima, o protestantismo estadunidense de missão que se dirigiu para o Brasil a partir da segunda metade do século XIX; (2) dentro do protestantismo de missão, o presbiterianismo, ramo protestante calvinista ou reformado, que oficialmente está em terras brasileiras desde 1859, com a chegada do missionário Ashbel Green Simonton ao Rio de Janeiro;[2] (3) dentro do presbiterianismo, a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB).[3] A ampliação possível da compreensão do estudo de caso particular para a do macrocosmo protestante brasileiro fica por conta dos leitores e de outros pesquisadores dos mesmos assuntos.
Para a construção do objeto de investigação, interessa ainda a explicação de Joachim Wach de que são necessários alguns pressupostos e conteúdos para a existência de uma organização religiosa, que vão determinar também a possibilidade de existência de uma igreja. São as condições para a garantia da existência e sobrevivência da instituição e, depois, seu fortalecimento em concorrência dentro do campo religioso.

Acompanhada de continuada reflexão e discussão, de sistematização e elaboração de doutrina, segue-se a cuidadosa e abrangente formação de norma de fé ou credo, a padronização de formas de culto coletivo e eventualmente o estabelecimento de uma constituição para dar sustento à nova organização estável. A tradição oral é exarada por escrito, a tradição escrita é reunida e padronizada, redefine-se a doutrina e daí por diante são classificados como heresia todos os desvios e as opiniões que não estejam de acordo com os ensinamentos oficialmente aceitos. [Adolf von] Harnack enumera os seguintes fatores que influenciaram na formação do dogma cristão: 1) as idéias derivadas dos escritores canônicos; 2) a tradição primitiva; 3) as necessidades de culto e constitucionais; 4) adaptação ao pensamento dos tempos; 5) condições políticas e sociais; 6) idéias morais em transformação; 7) consistência lógica e analogia; 8) tendência à harmonização das diferenças existentes; 9) exclusão de erro; 10) força do hábito. Com o crescimento mais abundante de formas de expressão cúltica como práticas devocionais, ritual, calendário e festas, tornaram-se necessárias divisão mais bem elaborada e diferenciação de funções e funcionários. O apostolado na primitiva Igreja cristã era atribuído ao próprio fundador (Mt 16,13ss; 18,72; Atos) e incluía funções que posteriormente deveriam ser assumidas por grupos diferentes (ordens) (Efésios, caps. 4 e 11). O diaconato (Atos, cap. 6), o presbiterato (Atos, cap. 21) e o episcopado (1ª Timóteo) seguiram-se em devida sucessão. As três ordens, cuja relação e legitimidade seriam apaixonadamente discutidas em tempos posteriores, foram assim estabelecidas, no início provavelmente com diferenças locais. Mesmo então, por um tempo reconhecia-se a autoridade de pessoas com extraordinários dons espirituais. À medida que a liderança carismática foi declinando, porém, foi surgindo um tipo diferente de autoridade, o "clero", que se distinguia do "laicato” (WACH, 1990, p. 177-179).[4]

Pressupostos conceituais e conteúdos gerais que garantem a existência, fortalecimento e posicionamento histórico e social da IPB (instituição religiosa e comunidade de fé) frente à concorrência interna ao campo religioso brasileiro e aos microcampos protestante e presbiteriano. Os três primeiros artigos da Constituição da IPB (CI/IPB) com seus parágrafos e alíneas, longos o suficiente para não serem transcritos aqui, definem a natureza, o governo e os fins da IPB, e parecem acompanhar os passos listados acima por Wach.

1 Dominação racional-legal: a burocracia presbiteriana

Para análise da administração na IPB, relações de poder em seu interior e exercício da autoridade de uns sobre os outros (detentores de poder versus fiéis consumidores de bens religiosos), há necessidade de conceituar o tipo de dominação que ocorre nela.[5] Segundo terminologia weberiana, dá-se na IPB a dominação de caráter racional ou legal, pois sua legitimidade reside nas ordens estatuídas. Os detentores do poder são obedecidos não por direito próprio, mas em virtude das regras, que podem ou não ser modificadas por meio de processos previstos pelo próprio texto legal.[6]
As posições antecedem seus ocupantes, segundo a teoria geral de funcionamento dos campos (BOURDIEU, 1992). Eleitos diretamente pela assembléia dos membros da igreja, os presbíteros têm sua autoridade garantida por leis:

O Presbítero regente é o representante imediato do povo, por este eleito e ordenado pelo Conselho, para, juntamente com o pastor, exercer o governo e a disciplina e zelar pelos interesses da igreja a que pertencer, bem como pelos de toda a comunidade, quando para isso eleito ou designado (CI/IPB, Art. 50).

Apesar de os presbíteros não serem nomeados, mas eleitos, e de não receberem remuneração monetária pelo seu trabalho, pode-se dizer que eles são o quadro burocrático-administrativo da igreja, uma vez que são eleitos para exercerem o governo da igreja.[7]
O caso da IPB e seus presbíteros regentes (leigos eleitos) e docentes (pastores) não é mesmo o de um tipo puro de dominação: garantida a preponderância das leis estatuídas, o sistema traz em seu bojo elementos mesclados dos três tipos de dominação. A contaminação do modelo ocorre da seguinte maneira: os homens[8] escolhidos são os que gozam de prestígio na comunidade, em virtude de sua tradição (origem familiar, status social)[9] e carisma pessoal (dons, talentos, aptidões naturais).[10]
Wilson Emerick de Souza (1998) propõe a existência de um código introjetado no inconsciente dos fiéis que determina um modelo ideal de representante: estabilidade financeira, eficiência profissional, exemplo de vida familiar, opção política e teológica conservadora, rigorismo disciplinar, espírito anticatólico, centralidade de poder, elitismo e símbolos de status.

Ao contrário do que prevê a sua estrutura governamental quanto à inexistência de hierarquia entre os diversos cargos na Igreja, os presbíteros representam o poder na instituição e, devido aos seus privilégios, competem entre si e especialmente com o pastor. Outra evidência do status da posição frente ao grupo é evidenciada por ocasião das eleições internas que são bastante concorridas, envolvendo disputa pelo exercício do poder, uma vez que este é o posto de maior importância na comunidade local e oferecerá condições para galgar outros cargos nos concílios superiores. O que se verifica no processo eleitoral é que, geralmente, os não-eleitos se distanciam da comunidade e de outros cargos menores, ou passam a freqüentar outra comunidade visando a reiniciar sua trajetória na busca do exercício do poder (SOUZA, 1998, p. 26).

Como qualquer outro locus, o campo religioso é também construído socialmente por atores que dão significado a ele e dele recebem significado, portanto, as proposições acima fazem sentido porque, ainda que menos atraente à maioria das pessoas do que outras formas de poder e dominação, o poder religioso atrai aquelas que habitam o mundo religioso.
Na IPB, o enfoque das lutas internas pelo poder recai sobre o conflito primordial entre a ortodoxia e a heresia, não somente em sentido teológico, mas como as forças do novo contra as da ortodoxia dominante, que pretende preservar o poder administrativo dos bens religiosos por meio do monopólio da administração eclesiástica.
Para minimizar a competição (excluir a concorrência), os mantenedores do status quo fazem uso de muitos artifícios na luta pelo poder: os principais instrumentos são a doutrina e o controle do comportamento dos fiéis.[11] Os homens do poder político-eclesiástico tornam-se também os homens do poder de manipulação dos bens religiosos, inclusive da vida dos fiéis, pois se apresentam como os únicos detentores, manipuladores e porta-vozes da vontade de Deus.[12]

2 Poder condicionado: a organização presbiteriana

O mesmo objeto e sua dinâmica de dominação burocrática podem ser explicados de outra forma, por meio de outra linguagem. É a sociologia em busca do diálogo, da transdisciplinaridade. O campo religioso e a IPB dentro dele lançam desafios plurais à compreensão científica, sociológica. As respostas também têm de ser plurais.
Em Anatomia do Poder, Galbraith (1986) desenvolve uma análise histórica do poder e das relações de poder entre as pessoas. Sua intenção não é repetir esquemas de obras anteriores sobre o assunto: o estudo do poder político, militar, religioso, econômico etc., mas buscar as explicações para os conteúdos e continentes mais profundos do poder, daí a anatomia.
Dentre os teóricos que o antecederam na tarefa, a quem ele assume dever parte de sua bagagem cultural, apresenta-se Max Weber em primeiro lugar (GALBRAITH,1996). Já no primeiro capítulo, "Uma visão geral", Galbraith retoma a definição weberiana: poder é "a possibilidade de alguém impor sua vontade sobre o comportamento de outras pessoas" (1986, p. 2). A afinidade dos temas propostos pelos dois autores é genésica e gnosiológica, resta evidenciar a originalidade terminológica e a importância das idéias na obra de Galbraith.
Três são os tipos puros de poder: condigno, compensatório e condicionado. Para os quais vale a análise anterior: "A dificuldade para se compreender o poder é, como sempre, a ausência de casos puros" (GALBRAITH, 1986, p. 24). A cada tipo de poder correspondem um instrumento para o seu exercício e uma fonte de onde ele emana, os quais distinguem os detentores do poder daqueles que lhe são subordinados.[13]
O instrumento do poder condigno é a ameaça de punição e sofrimento; sua fonte, a personalidade: espécie de liderança capaz de se impor fazendo uso de suas qualidades físicas, mentais, oratórias, morais. No caso seguinte, como o próprio nome indica, o instrumento do poder compensatório é a recompensa positiva, cuja fonte é a propriedade de bens e capital. O condigno e o compensatório são dois tipos de poder objetivos: "aqueles que aceitam a vontade de outros estão conscientes de fazê-lo" e "aqueles que exercem o poder também o fazem conscientemente" (GALBRAITH, 1986, p. 15). O poder condicionado é mais sutil: às vezes, nem os que detêm o poder e nem os dominados têm consciência clara de estar numa relação de dominação. Ocorre o condicionamento – daí o nome – das pessoas para a aceitação das relações de poder. Seu instrumento é a persuasão, a educação ou o compromisso social. O compromisso com o que "parece natural, apropriado ou correto leva o indivíduo a se submeter à vontade alheia" (GALBRAITH, 1986, p. 6). O poder condicionado relaciona-se às convicções e crenças das pessoas. Sua fonte é a organização:

A definição de organização dada pelo dicionário – "um número de pessoas ou grupos ... unidos para algum propósito ou trabalho" – exprime seu caráter essencial. Os participantes, em maior ou menor grau, submeteram-se aos objetivos da organização em busca de algum objetivo comum que, por sua vez, normalmente requer a conquista da submissão de pessoas ou grupos externos à organização (GALBRAITH, 1996, p. 58).

Com a persuasão por instrumento e a organização como fonte, o que importa é a manutenção da crença, no caso do poder condicionado. Os funcionários da administração eclesiástica, presbíteros (mesmo sem remuneração financeira) e pastores da IPB, esforçam-se para que a mesma crença seja sempre mantida: o discurso que versa sobre as verdadeiras doutrinas. A educação condicionada, os mecanismos de defesa e disciplina da organização eclesiástica possibilitam a salvaguarda da linguagem correta e das pessoas que a aceitam.
O que se espera dos fiéis é a aceitação como que natural das coisas sociais, sem a busca pelas origens. Na experiência cotidiana nas igrejas da IPB, é comum que se diga e ouça: "sempre foi assim", "isso é para ser aceito" ou "não se discute". Rubem Alves[14] afirma que as instituições, também a igreja, "são cristalizações de uma sabedoria que não tem consciência de sua origem" (1982, p. 41); também que são herança do passado e oferecem aos fiéis uma interpretação pronta do passado e do mundo, que traz em seu bojo a indicação dos comportamentos adequados frente aos problemas da vida. A sabedoria das instituições é “herdada e o passado tem sempre prioridade sobre o presente” (ALVES, 1982, p. 43).
A educação, formal e informal, é instrumento para persuasão das pessoas em relação à aceitação do status quo e dos que detêm o poder dentro dele. A educação assume forte tendência de doutrinação (propaganda), cujo objetivo é o de manter a crença. “O poder condicionado é o produto de um continuum que parte da persuasão objetiva, visível, até o ponto em que aquilo que o indivíduo no contexto social fora levado a acreditar seja intrinsecamente correto” (GALBRAITH, 1986, p. 30).
O objetivo desse tipo de educação é alcançado quando cada vez mais pessoas têm menos interesse em pensar, refletir, discutir. Como no exército, Galbraith considera que dentro das empresas atuais faz muito sucesso o discurso: "as crenças e aspirações da empresa existem para ser aceitas. E o funcionário aceita e cumpre a sua obrigação" (1986, p. 62). A análise do discurso do exército e da empresa pode ser aplicada à igreja também, o que Galbraith (1986) autoriza ao analisar paralelamente a igreja, o exército e a empresa, dentre outras instituições, como modelos comprobatórios de suas hipóteses.
Por produção de pensamento correto nas mentes dos neófitos recém-convertidos e por reprodução no caso de fiéis mais experientes, uma organização religiosa desenvolve competente instrumento de defesa do seu corpo doutrinário. No caso da IPB, para além dos momentos informais de relacionamento, a educação acontece formalmente por meio de sermões nos cultos, estudos bíblicos e doutrinários, e aulas na Escola Dominical.
Como grupo de pessoas unidas com mesmos propósitos, a organização torna-se fechada ao novo que pretenda alterar o que sempre existiu: questionamentos, idéias, propostas, críticas. Galbraith chega a afirmar "que a história de expressões altamente organizadas de poder – da Igreja, do partido comunista, até mesmo de uma máquina política municipal – é uma longa e ininterrupta crônica de tentativas para eliminar a heresia" (1986, p. 65). A eliminação das heresias (e dos hereges) faz parte da dinâmica própria de funcionamento do campo religioso a fim de mostrar quem manda no campo religioso.
O fiel que não se condiciona ao poder de forma integral é considerado um dissidente interno, e tende a ser expulso da igreja.[15] Da mesma forma que as heresias doutrinárias ou o comportamento fora do padrão esperado não entram na igreja, a organização não permite que os diferentes possam falar em seu meio. É comum que se ouça no meio presbiteriano brasileiro (igrejas, seminários, concílios, instituições): "ele não pode falar aqui, pois não pensa como nós". Os fiéis, e até alunos das escolas teológicas, são considerados seres em condicionamento, não em processo dialógico de educação.

CONCLUSÃO

A análise da igreja como instituição social, e não apenas como comunidade religiosa, mística ou de fé, permite a Rubem Alves afirmar que ela "é um mecanismo social que programa o comportamento humano de forma especializada, de sorte que ele produz os objetos predeterminados pela instituição" (1982, p. 41). A função da instituição é fundamentalmente prática, pois programa o comportamento por meio da persuasão e reforço das crenças, e conduz o indivíduo a reproduzir comportamentos segundo o monopólio da instituição. A funcionabilidade da instituição identifica-se com a própria verdade.
É dentro da instituição-igreja que se rotula um discurso de ortodoxo ou heterodoxo, como resultado de disputa de poder político dos agentes envolvidos na sustentação dos discursos. A chamada vontade de Deus é o discurso de um ser humano ou de um coletivo forte o suficiente para ser vencedor na concorrência, fazendo de suas palavras as de Deus. A heresia deixa de ser uma questão de verdade e passa a ser uma questão relacionada a poder. Heresia é a voz dos fracos.

Não nos esqueçamos, (...) de que a palavra herege, bem como a palavra ortodoxo, são palavras usadas por alguém. É evidente que os hereges não se definem como hereges. Heresia é uma palavra que é pronunciada pelos ortodoxos. Aqueles que têm o poder para se definir como ortodoxos e para definir outros como hereges são, evidentemente, aqueles que são mais fortes: os que podem prender, amedrontar, expulsar. Em outras palavras, aqueles que têm o poder para usar o mundo constituído pela linguagem como instrumento de poder (ALVES, 1982, p. 36).

Do geral de volta para o caso da IPB, há um exemplo típico a respeito de tudo o que se tratou acima: no papel de representantes da vontade de Deus, presbíteros e pastores têm consciência própria de que representam as realidades divinas. Há uma identificação pessoal com o papel.

(...) é muito importante recordarmos que os papéis não são apenas padrões externos de conduta, mas são interiorizados na consciência daqueles que os desempenham e constituem um elemento essencial da identidade subjetiva desses indivíduos (BERGER, 1995, p. 105).

Depois de sua eleição, os presbíteros regentes entendem-se como representantes plenipotenciários de Deus, sendo que a sua vontade é também a dele. As decisões humanas passam a ser divinas. Há uma mistificação e santificação das palavras e ações humanas.

A autoridade política é entendida como agente dos deuses, ou idealmente até como uma encarnação divina. O poder humano, o governo e o castigo se tornam, assim, fenômenos sacramentais, isto é, canais pelos quais forças divinas são aplicadas à vida dos homens para influenciá-los. O governante fala em nome dos deuses, ou é um deus e obedecer-lhe equivale a estar em relação correta com o mundo dos deuses (BERGER, 1995, p. 47).

Os fiéis, por sua vez, tendem a perder a capacidade de se indignar ou de entender que até as instituições podem ser alteradas e superadas, da mesma maneira o discurso que sempre as sustentou. O fato de o discurso vencedor ser o de quem tem mais poder contribui para que as heresias potencialmente regeneradoras morram antes do seu nascimento, abortadas pelos mecanismos da instituição.
Como nunca é possível enquadrar a vida num artigo científico, antes de terminar, é necessário o registro de que a dinâmica da relação ortodoxia versus heresia não se restringe ao que foi exposto aqui. Dentro do campo religioso, mesmo quando o caso é o de uma burocracia organizacional conservadora como a IPB, nascem as resistências ao poder da forma como é operado. A resistência ao poder é algo intrínseco ao fenômeno assim como o seu exercício. Weber e Bourdieu, também Galbraith, já formularam teorias para a explicação do poder que gera contrapoder, inclusive para o caso de religiões, nas mesmas obras citadas aqui. Teorias que podem ser apropriadas para a explicação do presbiterianismo brasileiro, sem forçar sua intenção original, uma vez que se tratam de teorias gerais. O que se apresenta como proposta para um outro artigo.

DISPONÍVEL EM: <http://www.pucsp.br/revistanures/revista3/3_edicao_breno.pdf> ACESSO EM 06/04/2015.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Rubem Azevedo. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: Paulinas, 1982. 178p.
BERGER, Peter Ludwig. O dossel sagrado; elementos para uma teoria sociológica da religião. Trad. José Carlos Barcellos. 2 ed. São Paulo: Paulus, 1995. 194p.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Trad. Sérgio Miceli et alii. 3 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992. 361p.
CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de (org.). Católicos, protestantes, espíritas. Petrópolis: Vozes, 1973. 184p.
CERVANTES-ORTIZ, Leopoldo. A teologia de Rubem Alves: poesia, brincadeira e erotismo. Trad. Eleonora Frenkel Barretto. Campinas: Papirus, 2005. 250p.
CI/IPB. In: Manual Presbiteriano. 12 ed. São Paulo: Cultura Cristã, 1995. p. 7-64.
COHN, Gabriel (org.). Max Weber. Trad. Amélia Cohn; Gabriel Cohn. 3 ed. São Paulo: Ática, 1991. 167p.
GALBRAITH, John Kennedy. Anatomia do poder. Trad. Hilário Torloni. 3 ed. São Paulo: Pioneira, 1989. 205p.
MENDONÇA, Antônio Gouvêa. Evolução histórica e configuração atual do protestantismo no Brasil. In: ____; VELASQUES FILHO, Prócoro (orgs.). Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola; Ciências da Religião, 1990. p. 11-59.
____. Protestantismo brasileiro, uma breve interpretação histórica. In: SOUZA, Beatriz Muniz de; MARTINO, Luís Mauro Sá (orgs.). Sociologia da religião e mudança social: católicos, protestantes e novos movimentos religiosos no Brasil. São Paulo: Paulus, 2004. p. 49-79.
SOUZA, Wilson Emerick de. Pastores em crise: o conflito da identidade social do pastor presbiteriano. São Bernardo do Campo: UMESP, 1998. 139p. (Dissertação de mestrado.)
WACH, Joachim. Sociologia da religião. Trad. Attílio Cancian. São Paulo: Paulinas, 1990. 495p.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, v. 1. Trad. Regis Barbosa; Karen Elsabe Barbosa. 3 ed. Brasília: UnB, 1994. 422p.



[1] A temática das três categorias foi apresentada por Antônio Gouvêa Mendonça em sua comunicação "Protestantismo brasileiro, uma breve interpretação histórica" no Encontro Temático "Católicos, Protestantes, Espíritas... 30 anos depois", realizado pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, de 26 a 28 de agosto de 2003; do qual se originou o livro Sociologia da religião e mudança social (...), organizado por Beatriz Muniz de Souza e Luís Mauro Sá Martino.
[2] "Os presbiterianos brasileiros são fiéis a João Calvino quanto ao governo eclesiástico. Organizam-se a partir da relativa autonomia da congregação local, num sistema federativo e piramidal de concílios. Cada congregação local tem um conselho de presbíteros eleitos por ela; um grupo de congregações locais forma um presbitério; um grupo de presbitérios forma um sínodo, e todos os presbitérios formam o supremo concílio ou assembléia geral" (MENDONÇA, 1990, p. 36).
[3] Dentro da categoria presbiterianismo de missão, além da IPB (muito conservadora), organizaram-se no Brasil outras denominações presbiterianas ligadas direta ou indiretamente ao movimento original: Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (1903, moderadamente conservadora), Igreja Presbiteriana Conservadora (1940, conservadora radical, saída da IPIB), Igreja Presbiteriana Fundamentalista (1956, conservadora radical, saída da IPB), Igreja Presbiteriana Renovada (1975, pentecostal, saída da IPB e da IPIB) e Igreja Presbiteriana Unida do Brasil (1978, aberta e ecumênica, saída da IPB) (MENDONÇA, 1990). Cf. também: MATOS, Alderi Souza de. Denominações Presbiterianas no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 8 mar. 2006.
[4] O próprio Wach acrescenta em nota de rodapé: "A controvérsia 'episcopal' e 'presbiteral' não pode ser discutida aqui. Alguns interpretam o episcopado como função (de alguns anciãos), outros como cargo distinto" (1990, p. 178). A IPB considera que presbiterato e episcopado são palavras que designam o mesmo ofício.
[5] As palavras poder e dominação têm aparecido no texto acima sem preocupação rigorosa com o sentido pretendido por Weber para elas. Ainda que sejam próximas, o sociólogo propõe certo cuidado quanto a sua utilização: "poder significa toda probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade" e "dominação é a probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas indicáveis" (WEBER, 1994, p. 33). Weber considera o termo dominação mais preciso do que poder (sociologicamente amorfo, em sua opinião).
[6] A CI/IPB, promulgada aos 20 de julho de 1950, é considerada um documento de difícil alteração junto com os Símbolos de Fé da IPB (os documentos da Assembléia de Westminster do século XVII), por comparação com a Bíblia, imutável, e com as decisões dos concílios, mais abertas a emendas ou reformas. "Esta Constituição, a Confissão de Fé e os Catecismos Maior e Breve, em vigor na Igreja Presbiteriana do Brasil, não podem ser emendados ou reformados senão por iniciativa do Supremo Concílio" (CI/IPB, Art. 139). Para emendas, modificações que atingem apenas partes da CI/IPB ou dos documentos de Westminster, são necessários votos favoráveis de 2/3 dos presbitérios para que o assunto seja enviado ao Supremo Concílio para aprovação; no caso de reforma, alteração que modifica o todo ou grande parte dos documentos legais ou doutrinários, há necessidade de manifestação favorável de 3/4 dos presbitérios.
[7] Weber autoriza a classificação, pois admite que há tipos de administração burocrática, a caracterizar a dominação racional, que não se enquadram em todos os pressupostos gerais e técnicos exigidos pelo padrão teórico adotado, mas que não deixam de ser administração burocrática de um tipo de dominação racional (COHN, 1991).
[8] A IPB denomina seu sistema de governo de democrático-representativo, porém, a democracia é limitada porque as mulheres, membros da igreja, votam para escolher seus representantes, mas não podem ser votadas: "Para o ofício de presbítero (...) serão eleitos homens maiores de 18 anos e civilmente capazes" (CI/IPB, Art. 25, § 2º).
[9] Na dominação tradicional, "obedece-se à pessoa em virtude de sua dignidade própria, santificada pela tradição: por fidelidade" (COHN, 1991, p. 131).
[10] A dominação carismática é "baseada na veneração extracotidiana da santidade, do poder heróico ou do caráter exemplar de uma pessoa e das ordens por esta reveladas ou criadas" (WEBER, 1994, p. 141). Wach (1990) lembra que, para Weber, toda eleição em organizações religiosas leva em conta o carisma pessoal do eleito.
[11] Não é por acaso que, junto com os símbolos doutrinários de fé (os documentos de Westminster) e sua constituição, a IPB mantenha como um de seus documentos principais o Código de Disciplina. A intenção primeira do documento é positiva, ou seja, operar por condicionamento para manter disciplinarmente o funcionamento da denominação. Caso haja necessidade, segundo opinião de presbíteros e pastores nos concílios competentes, o documento assume o caráter negativo da disciplina, ou seja, passa a operar para corrigir por meio de admoestação, pena ou exclusão do membro faltoso.
[12] Seria importante explicar como e por que o exercício do poder passa do presbítero docente (o pastor) para os presbíteros regentes na IPB: o que se configura tarefa extensa demais para os limites deste artigo. De passagem, registra-se que o entendimento do trânsito e operacionalização do poder no presbiterianismo deve ser buscado nas relações entre as categorias sacerdote, profeta e leigo, que compõem a explicação da gênese e estrutura do campo religioso (WEBER, 1994; BOURDIEU, 1992).
[13] Sobre o fascínio do poder, Galbraith argumenta que “indivíduos e grupos buscam o poder para promover seus próprios interesses, inclusive, e talvez principalmente, seus próprios interesses pecuniários. E para estender a outros os seus valores pessoais, religiosos e sociais” (GALBRAITH, 1986, p. 8). No caso das religiões, aqueles que detêm o poder na comunidade pretendem manter-se nessa condição, como garantia de que seus valores e interesses poderão ser satisfeitos, inclusive, e talvez principalmente, os pecuniários.
[14] A entrada de Rubem Alves no diálogo com os clássicos da sociologia da religião e do poder é justificada pelo seguinte argumento: "No final de 1970, Alves, 'sem dúvida o mais importante teólogo que a IPB (Igreja Presbiteriana do Brasil) produziu até agora [1985]', renunciou a seus direitos como pastor [da IPB]" (Hans-Jürgen Prien apud CERVANTES-ORTIZ, 2005). Sua produção bibliográfica inclui uma série de textos e livros a respeito do funcionamento do campo religioso brasileiro, tendo por objeto de estudo em muitos casos a IPB, seu clima de inquisição, intolerância e violência contra o pensamento divergente (CERVANTES-ORTIZ, 2005).
[15] O indivíduo de fora, que não se submete à organização, é menos perigoso e menos combatido do que o dissidente interno (GALBRAITH, 1986).

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